Prefácio

Desta singularidade, entre as muitas O embate entre figuração e abstração do título desta obra é uma arena em que se joga a noção de singularidade, que me parece ser o mais profundo eixo analítico em questão e que circula ainda de modo frouxo – apesar de sua imensa relevância analítica – no jargão das humanidades contemporâneas. A contribuição de Patricia Reinheimer à sua ilustração merece assim nossa mais alta atenção: trata-se de uma análise de questões cruciais da modernidade ocidental e – nela – da brasileira, à luz justamente de uma versão controlada daquela noção, cultivada em prestigiosa corrente da atual sociologia francesa.

Georg Simmel, ao contrastar modelarmente um individualismo quantitativo e outro qualitativo, deu uma forma sociológica impecável
às duas grandes configurações culturais que sustentaram a formação da cosmologia ocidental moderna: o modelo quantitativo
se referia ao ideal da cidadania moderna, com seus atributos de liberdade e igualdade dos indivíduos; o modelo qualitativo se referia ao ideal da autonomia própria de cada ser individual, tomado ele mesmo como uma totalidade. É a isso que os pensadores românticos do século XIX chamavam de “singularidade”: uma individualidade da diferença e não da igualdade. Aplicaram-na a todos os níveis ontológicos: singularidades culturais, como as nações ou as eras; pessoais, como os artistas ou os pensadores; e artísticas, como as obras de arte, esses grandes testemunhos da criatividade humana através dos tempos.

10 • Candido Portinari e Mário Pedrosa Nathalie Heinich, a cujas inovadoras propostas em sociologia da arte a autora deste livro se filia, cunhou a expressão “regime de singularidade” para designar, contra um antigo “regime de comunidade”, este reino de afirmação da condição humana marcado pelos atributos de sensibilidade, criatividade e autenticidade. Para quem, como eu,
tem explorado as implicações heurísticas da oposição estruturante entre o iluminismo e o romantismo na modernidade ocidental, trata-se exatamente do que procuro designar por esta última categoria tão importante e tão frouxamente empregada quanto a de singularidade.

Não fossem as duas justamente indissociáveis!

O livro se debruça sobre uma problemática empírica muito precisa,capaz de fazer render controladamente as questões teóricas
abrangentes que o inspiraram: a relação entre artistas e críticos de arte no pós Segunda Grande Guerra, um momento crucial para a
adaptação do mercado brasileiro de arte (e de suas ideologias) às tendências que se haviam digladiado no campo europeu de um pouco
antes, do entreguerras. Para tanto, se debruça sobre o “caso” da oposição entre a arte de Candido Portinari, o pintor laureado do modernismo brasileiro, e a crítica de arte de Mário Pedrosa, figura capital, ativa e polêmica das novas tendências.
Deste novo horizonte deveriam desaparecer as associações que haviam inspirado uma arte engajada entre os séculos XIX e XX, comprometida com a produção de uma imagística da realidade natural ou da realidade nacional, ou ainda com a produção de corpos imaginários mais precisos, todos externos à forma artística – como puderam ser os que se inspiraram nos variados programas ideológicos desse intenso período. O grande ciclo da figuração ocidental moderna, desde o advento da paisagem e do retrato até as desconstruções formais características do início do século XX, devia então ceder o passo a uma maior abstração – literalmente à “abstração” – como garantia de uma autonomia que, só ela, poderia levar esse mundo sagrado à “excelência absoluta”.
Tratava-se de renunciar a todo propósito engajado ou voto piedoso, comprometido, objetivando chegar ao limite último do ideal da
vanguarda, uma “obrigação de vanguarda”, como diz a autora: consPatrícia Reinheimer

• 11 tante ruptura formal, constante desvio e transgressão em relação às normas e convenções. Embora toda cultura detenha a sua própria chave estética, seu modo específico de conceber a boa ordem plástica do mundo e de representá-la, o Ocidente moderno assumiu a preocupação com o estatuto do belo até as mais radicais consequências. É provável que isso se tenha dado como parte da constituição da representação “naturalista” do mundo que o caracteriza fundamente. “Representar” o mundo natural (e nele o mundo cultural emergente) foi um mandamento essencial do trajeto das artes ocidentais a partir do Renascimento. E não só de “representar”, mas de representar “naturalisticamente”, como se veio a dizer. O trajeto se adensou com a ênfase expressivista
do romantismo, em que a natureza a ser representada passava a ser a da interioridade dos sujeitos, suas paisagens e retratos íntimos, os estados de alma com que comungavam das condições sensíveis do mundo envolvente.

Num terceiro momento, que bem pode ser chamado de “pós-moderno” – como o faz a autora (embora eu tivesse preferido “neorromântico”), ideólogos como Pedrosa propuseram deslocar a avaliação da obra de arte desse contexto expressivo que a suscitara; não só de sua época e lugar, mas também da qualidade de seu autor, essa que fora a chave da representação romântica do gênio. Uma peça bélica fundamental de Mário Pedrosa para afirmar esse novo foco foi sua defesa do caráter artístico da produção dos internos de uma instituição psiquiátrica, em que a sensibilidade junguiana de Nise da Silveira suscitara a criação de um Museu do Inconsciente. Que testemunho mais patente da autonomia absoluta da obra do que esse, ali cultivado, da emersão de um sujeito que não se considera ser o senhor racional de sua produção?
Ao se debruçar sobre a posição de Portinari e de Pedrosa em seus campos e tempos, de modo a melhor fazer discernir as propriedades
do caso em questão, Patricia Reinheimer também contribui para uma antropologia da pessoa moderna e, particularmente, das pessoas
singulares, exemplares, que se expõem à vida pública e se configuram, por tal ou qual traço de suas carreiras, como modelos ativos,12 • Candido Portinari e Mário Pedrosa originais, para as gerações seguintes. Afinal foi – e continua sendo
– aí, mais ainda do que no tocante às nações – que se corporificou de maneira plena o “regime de singularidade” aqui tratado. Os perfis de Portinari e de Pedrosa se alinham assim a muitos outros, brasileiros, tratados pela antropologia que se cultiva no Museu Nacional. Em parte pela inspiração dos estudos de Luiz de Castro Faria sobre campo intelectual, em parte pela de Gilberto Velho a respeito de “carreiras e trajetórias” (na linha do interacionismo), ou ainda em parte pela das análises de Louis Dumont sobre a ideologia do individualismo – muito importantes para minha própria carreira –, formou-se entre nós uma linha de trabalhos desse tipo, de que me ocorre mencionar os que fizeram Alfredo Wagner Berno de Almeida sobre Jorge Amado, Elisabeth Travassos sobre Mário de Andrade, Paulo Guérios sobre Villa-Lobos ou Regina Abreu sobre Miguel Calmon e Euclydes da Cunha. As singularidades pessoais são uma via régia para a compreensão das singularidades sociológicas em que emergem e de que participam.
Patricia Reinheimer obteve ainda inspiração fecunda, nessa direção, de Nathalie Heinich, com o seu famoso tratado sobre a “glória
de Van Gogh”. Inspiração fecunda porque não submissa, já que o nominalismo sociológico radical de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, hoje associado ao nome de Bruno Latour, e que paira no horizonte da obra, se faz mediar por uma antropologia flexível, atenta às nuances sutis dos emaranhados empíricos.

Numa obra que contém séria reflexão sobre as ideologias nacionais, grandemente tematizadas pela arte, avulta a análise do modo
como o Brasil adentrou, tardiamente, o “campo internacional das trocas artísticas”, onde hoje se movimenta em posição secundária,
mas com alguma destreza. Para a construção de sua singularidade, os personagens deste livro deram suas vidas, intensamente, em formidáveis embates; e elas retornam, esbatidas na reflexão antropológica, na singular qualidade desta obra de uma singular autora.

Luiz Fernando Dias Duarte
Professor Titular do Museu Nacional, UFRJ