Em 1830 o primeiro código criminal brasileiro materializou “uma expressão audaciosa da filosofia jurídica liberal1”. Consolidou-se por meio de influência de autores europeus e dos fundamentos do igualitarismo pleiteados pela Revolução Francesa, apesar de criado em uma nação escravocrata.2. De forma semelhante o Código Penal de 1890 foi estruturado por meio dos mesmos princípios, baseados nos pressupostos da “Escola Clássica do Direito”. Formulado a partir de teorias legais de obrigação contratual baseada na culpa, continha leis e previa penas a serem aplicadas igualmente a todos os indivíduos que cometessem delitos de mesma natureza3. Entretanto, tão logo afirmados na legislação republicana, esses princípios começaram a ser questionados em função da medicalização da loucura e da forte influência das teorias da “Escola Positiva do Direito ou Escola Antropológica” que circulavam na época.
Houve no sistema jurídico brasileiro um movimento análogo ao que a historiadora Ruth Harris4 detectou no sistema penal francês na Belle Époque. Segundo ela, novas abordagens médicas que faziam uso das teorias deterministas para a explicação de comportamentos considerados anti-sociais, tiveram impacto sobre o sistema penal francês,fazendo com que fosse repensada a idéia que o fundamentava: a responsabilidade moral baseada no pressuposto de que indivíduos possuíam livre-arbítrio.

No Brasil consolidava-se “o processo de medicalização da loucura, transformando-a em doença mental, em objeto exclusivo de um saber de uma prática especializados, monopolizados pelo alienista.” 5. Ações que antes eram categorizadas como atos de vontade individual, a partir da introdução deste tipo específico de saber médico, passaram a ser compreendidas como insanidade. Os debates sobre loucura, juntamente com as discussões sobre o crime contribuíram para a crítica da idéia de “livre arbítrio”. Essa nova abordagem se refletiu na maneira de pensar a questão da responsabilidade criminal no Brasil, temática sobre a qual versará o presente artigo, parte de uma investigação mais ampla cujo objetivo foi pesquisar a forma como crimes femininos em contexto de relações amorosas foram pensados e conduzidos entre 1890 a 1940 no Rio de Janeiro. Para tanto, foi analisada a produção científica sobre crime realizada por psiquiatras, neurologistas, médico-legistas e juristas, profissionais que publicavam em revistas vinculadas aos campos jurídico e médico-legal.